quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

pois, eu queria um título para isto mas não me ocorre nenhum...

Era a procissão do silêncio. Ela, nova naquelas paragens, acedeu em acompanhar a velhota rechonchuda que a adoptara desde que ali chegara. Continuava um calor abrasador, apesar do sol já há muito ter declinado no horizonte. A luz dos candeeiros da rua fora desligada e as velas nas mãos dos fiéis eram a única iluminação existente. As velas e a lua, alta e imponente no céu nocturno do Alentejo. O padre, e que padre era aquele Meu Deus, guiava o rebanho pelas ruas da vila, num silêncio apenas quebrado pelos passos dos devotos e dos curiosos. Foi então que a “sua” velhota lhe apertou um pouco mais o braço e quase em simultâneo largou um peido cuja amplitude sonora se teria ouvido, certamente, na aldeia vizinha. Não conseguiu evitar o riso, mesmo perante o olhar reprovador de alguns. Outros sorriram também. Mas aquele foi só o início duma sucessão interminável de estrondosos e mal cheirosos peidos. Ela ria-se. A velhota sorria timidamente enquanto lhe murmurava ao ouvido “já nem no meu rabo mando.”.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

nada é definitivo

Quando começo a ficar cheia de certezas, vem a vida e dá-me um abanão. É a forma que tem de me lembrar que nada é eterno, nada é definitivo.
Gosto e preciso do meu porto de abrigo. É lá que me reencontro e reconheço. Mas não saberia viver sem este carácter mutável da vida, que me empurra para estradas novas, que me ensina a crescer, que faz com que não me acomode.

sábado, 26 de novembro de 2011

a vida é uma festa

Há dias em que acordo com a convicção absoluta que o mundo é uma festa, que a vida é uma dádiva preciosa e que tenho o dever de ser o mais feliz possível. Habituei-me, desde cedo, a não depositar nos outros a responsabilidade da minha felicidade. Nem sempre é fácil. Nem sempre quero admitir que se as coisas me correm mal, talvez seja porque não me esforcei tanto como podia. Nem sempre me apetece aceitar que, na maioria das vezes, quando alguém me trata com menos consideração, foi porque eu o fui permitindo. É sempre mais fácil colocar as culpas nos outros, no azar, na vida, no acaso. Todas as acções, mesmo as passivas, provocam reacções. A vida, os outros, retribuem-me exactamente aquilo que eu dou, aquilo que eu permito. É verdade que há verdadeiros azares e pessoas com má índole. Como também existem golpes de sorte e anjos no meu caminho. Uns balançam os outros. O resto, o dia-a-dia, é o reflexo das minhas escolhas, das minhas vontades conscientes ou inconscientes. Pesando tudo, tenho muitos anjos junto de mim e a vida é, realmente uma festa.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

***

O mundo tem lugares escuros. E não são somente os locais dessa África imensa onde se perece de fome, de sede, de crueldade, onde tantos morrem sem nunca terem vivido. Nem os campos de batalha de guerras sem nome e sem sentido. Ou os sombrios becos da vida onde se rouba, mata, viola, agride. Há lugares escuros dentro de nós, dentro daqueles que amamos. E, por vezes, esses lugares turvam-nos a alma. Porém, sem esta escuridão, não reconheceríamos a luz. São as duas faces da mesma moeda. Perco-me para me poder reencontrar, na eterna dualidade que existe dentro de mim.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

nostalgia de outono

O cheiro das castanhas assadas continua a impregnar o ar e os nossos sentidos nos fins de tarde dourados de Outono. Ainda são “quentes e boas” na minha memória mas deixaram de o ser nos pregões extintos dos vendedores. “Um cartuxo de castanhas, por favor.” e já não me chega às mãos uma embalagem improvisada nas páginas de uma velha lista telefónica. “Não é higiénico.” dizem os senhores de Bruxelas. E nós, nós obedecemos aos senhores de Bruxelas. As castanhas ainda são lusas, vindas de um qualquer souto centenário que teima em escapar incólume às chamas que ano após ano consomem Portugal.
Sinto o cheiro quente das castanhas assadas na rua. Mais à frente está o vendedor. O fumo denuncia-o. Fecho os olhos e num instante regresso aos dias leves da adolescência. “Um cartuxo, por favor”, peço com um sorriso enquanto deliberadamente deixo cair o estojo junto de um homem elegante que aguarda a sua vez. “É velho para ti”, sussurra uma amiga. O homem entrega-me o estojo e eu agradeço-lhe com um sorriso rasgado e um olhar coquete. Pago ao vendedor e respondo serenamente à minha amiga: “É homem!”. Não expliquei mais nada. Nem sabia. Praticávamos por instinto a arte que acabáramos de descobrir.

a sombra do medo

Abriu os olhos e viu-as nitidamente. Sombras dançando na cadência de uma qualquer música inaudível. Fechou os olhos assustada. Se continuasse a vê-las teria de consultar um médico. Um oftalmologista, um neurologista ou, na pior das hipóteses, um psiquiatra. Adormeceu inquieta. Os dias passaram-se e continuava a vê-las, cada vez com mais frequência. Já não pensava no médico. Observava-as atenta. As sombras divertiam-se, sempre em folia. De vez em quando, parecia-lhe, ganhavam contornos mais nítidos. Vinham junto dela, acariciavam-lhe o rosto e percebia que lhe falavam. Habituou-se a elas. Eram várias e faziam-lhe agora companhia todo o dia. Homens e mulheres numa algazarra muda. Brindavam, bebiam e dançavam. E riam, riam muito.
Subitamente, deixou de ver as ver. Soube depois que tinha estado em coma durante vários dias. Sentiu-se feliz por rever pessoas de verdade. Mas sentia saudades das sombras. Lembrou-se da alegoria da caverna. Também para ela as sombras tinham sido a única realidade durante demasiado tempo, ou assim lhe parecia. Um dia voltou a vê-las. Era já velha, muito velha e estava muito doente. As sombras vieram junto de si, na sua eterna folia, e o seu coração moribundo encheu-se de alegria.

domingo, 6 de novembro de 2011

shadows & smeyes

O riso cativa-me. Gosto de almas cheias de riso. Gosto de ver o sorriso no olhar das pessoas. A língua inglesa tem uma palavra recente, smeyes (não sei se dicionarizada) que significa sorrir com o olhar. E se o riso me cativa, as sombras fascinam-me. É a eterna dualidade que sempre me seduziu. A luz e a sombra, o bem e o mal. A nossa essência. Suponho que existem pessoas genuinamente más e pessoas verdadeiramente boas. O comum dos mortais, onde me incluo, parece-me ser ambas as coisas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

dias...

Há dias raros em que tudo são inexplicações. Dias em que acordo atónita, como se uma tempestade me devassasse as entranhas. Dias em que nada faz sentido. Dias em que duvido de tudo, em que questiono tudo. Dias em que deixo a solidão entrar-me na alma e fico só a olhar por entre as lágrimas.
Há outros dias, menos raros, em que tudo parece ser tão evidente. Em que tudo parece arrumado no devido lugar, como se nem pudesse ser de outro modo. Dias em que a hesitação, o medo e a tristeza não são convidados e a vida flui, leve.
E há os dias de busca, de procura. Dias em que acordo com vontade de agarrar o mundo na palma das mãos e desvendá-lo. Dias gloriosos que me enfeitiçam com poentes de assombro, palavras envoltas em magia, brisas suaves que sussurram segredos.

Que dias prefiro? Não sei, de facto. Todos eles me acrescentam, todos me completam, todos fazem de mim aquilo que sou e aquilo que serei…

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

noite

A noite só cai, verdadeiramente, em lugares onde o excesso de iluminação ainda não chegou. Nos grandes centros urbanos nunca é realmente noite. A luz eléctrica ilumina ruas, estradas, lojas, fontes, pontes, discotecas, mendigos, bandidos, prostitutas e toda a sorte de noctívagos. Só fora desses centros podemos contemplar a noite em todo o seu esplendor, a escuridão imensa que se abate sobre o mundo e que torna tudo ao nosso redor invisível. Há uns tempos passei uns dias em Santa Clara. Era inverno e a casa rústica onde fiquei situava-se ligeiramente fora dos extremos da localidade, na sua parte mais alta. Gostava imenso de, ao final da tarde e já noite cerrada, vestir um agasalho, sentar-me no pial e olhar para baixo, para a aldeia muito branca e sossegada. Estava iluminada e das chaminés das casas, tão tipicamente alentejanas, saía o fumo das lareiras que aqueciam o lar. Olhava em volta e a escuridão imensa surpreendia-me. Não se descortinava absolutamente nada para lá da aldeia. Era como se estivéssemos numa ilha no meio do vazio. Sobre nós um céu negríssimo pejado de estrelas. Uma escuridão tão absoluta atrai-me de modo irresistível e, simultaneamente, desperta em mim sensações ancestrais: medo do escuro, medo do que ele possa ocultar. Não passa, contudo, duma sensação vaga praticamente encoberta pelo êxtase celeste, pelo silêncio quase perfeito. Conforta-me saber que ainda há lugares assim, onde posso, realmente, ver o céu e sentir o respirar da terra. E sentir-me parte deste todo.

sábado, 10 de setembro de 2011

no title allowed

Tenho um problema com os títulos. Um problema abrangente porque inclui desde títulos académicos a títulos de patentes militares e, o que mais me desagrada, os títulos a dar aos textos que escrevo. Se professores, doutores, brigadeiros e coronéis não me chateiam nada, já o mesmo não posso dizer do vazio que se instala no meu cérebro cada vez que preciso de nomear um texto. Logo eu, que sou capaz de comprar um livro só porque o nome me seduz. O pior é que em inglês me surge imediatamente o título perfeito. São títulos na língua de Shakespeare, é certo, mas devem ler-se com acento americano, claro. Anda uma criatura há anos a defender as culturas lusófonas e a lusofonia para depois ser assim, despudoradamente, traída por títulos pouco cooperantes.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

dias frágeis

Há dias frágeis, dias em que uma brisa suave me derruba, dias em que tenho um mar revolto dentro de mim. Há dias em que tudo me parece pouco, nada me satisfaz, nada me interessa e tudo me escurece. Há dias em que perco o rumo e fico sem saber onde é o norte. Há dias em que espero, pacientemente, que a chegada de um novo dia me leve esta ânsia de partir…  

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

vidas erradas

Há pouco fui ao supermercado e passei, como habitualmente, por um sem-abrigo que há muitos meses se instalou junto à porta de acesso ao parque exterior. Enquanto caminhava ouvi o tipo duma carrinha de distribuição afirmar, mais do que perguntar: “Tu, com essa vida, nem miúdas sacas”. O sem-abrigo que terá pouco mais de 30 anos - suspeito que lavadinho e com roupa catita punha muitos tipos a um canto - replicou-lhe calmamente: “Por acaso ainda na semana passada estive com uma. Tu devias estar a ver bola enquanto eu estava na brincadeira com ela”. O outro, de pança farta, querendo ter a última palavra: “Ah sim? E debaixo de que ponte?”. Já não ouvi a resposta. Quando saí, já o pançudo tinha isso à sua vida (arrisco-me a dizer vidinha) e o outro, o sem-abrigo, contava a sua estória a uma pequena plateia de mulheres e crianças. Fui andando devagar e percebi que o divórcio dos pais o tinha atirado para as estatísticas das crianças que ninguém quer. E assim foi crescendo, entregue à sua sorte e fazendo por sobreviver. Agora está ali. Nunca o vi pedir nada a ninguém, nunca o vi ser mal-educado e tem ainda nos olhos um brilho que a vida não lhe conseguiu apagar.
Fiquei a pensar que é preciso tão pouco para uma vida dar errado. Estamos sempre muito mais perto do precipício do que aquilo que imaginamos. Uma opção mal tomada, um passo em falso, um desaire amoroso, qualquer coisa. O facto é que todos temos em nós a possibilidade do abismo.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

(sobre)VIVER

Nos últimos tempos tenho ouvido muita gente responder à questão o que espera do futuro? com um simples sobreviver. Muitas dessas pessoas não estão doentes, não têm dificuldades económicas e, ainda assim, só esperam sobreviver. Ou o meu conceito está errado ou as pessoas esperam muito pouco da vida. Mesmo em plena crise económica, que também sinto na pele, ainda espero muito mais do que simplesmente sobreviver. É verdade que exercer o meu direito à futilidade (que em mim é mais uma vocação), desgraçando-me em sapatos e roupitas, se poderá tornar mais complicado mas, frivolidades à parte, há tanta vida para viver, tantas coisas que se podem fazer sem se gastar muito dinheiro. Ainda por cima as coisas que realmente importam não se compram. Se estivesse muito doente, então sim, desejaria com todas as forças sobreviver. Estando bem de saúde, quero mesmo é viver, muito!

há palavras que só os beijos calam

Acordei devagarinho com a luz suave da manhã a acariciar-me a pele e o cheiro a maresia a inundar-me os sentidos. Libertei-me lentamente dos braços dele e olhei em volta. Em frente tinha o imenso mar azul, plácido e apetecível. As gaivotas piavam no alvoroço de terem a praia por sua conta. Fechei os olhos e, por momentos, voltei ao céu estrelado da noite anterior. Estrelas, milhões delas, testemunhas mudas do prazer que partilhámos, testemunhas mudas de tantas estórias.
Ele acordou. Sorriu e beijou-me com olhos de desejo. Ainda tentei argumentar que a qualquer momento chegariam os primeiros madrugadores à praia mas... há resistências que só o desejo vence e há palavras que só os beijos calam.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

nada a acrescentar

"Ama-se aquilo com que se cruza, mulher, paisagem, caminho, ou porque evoca emoções sabidas ou porque é novo e vem casar com a busca com o que se adivinha e é pressentido a sós, e é só talvez assim."

sábado, 6 de agosto de 2011

Kronos e Kairós

"O passar do tempo goza com o género humano. Bem faziam os gregos diferenciando entre o Kronos, o simples passar dos segundos, e a incidência que determinados instantes teriam na nossa vida, fazendo dilatar essa medida de tempo e dotando-a de relevância, o Kairós."

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

sempre mais


Deixo pedaços de mim por todos os sítios onde passo, com todos os amigos que amo, a todos os amantes que tenho. Partilho-me e tenho cada vez mais, sempre acrescentada de tudo o que dou e de tudo o que vivo…

quinta-feira, 28 de julho de 2011

coisas que devíamos aprender no berço

A minha amiga S. acha que os bebés deviam ter um iphone acoplado à chucha. Para se irem logo habituando, justifica.
Eu, menos tecnológica (ainda que comece a achar bastante piada ao iphone), fiquei a pensar que não seria má ideia se o dito aparelho trouxesse inserido uma série de lições rápidas e fundamentais daquelas que, convenientemente, quase todos os educadores omitem aos petizes.
Numa das lições a criança ia aprendendo a importância de se dizer não quando realmente não queremos dizer sim. Parece fácil dizer não. Ledo engano. Quantas vezes dizemos sim só para não sermos chatos, desmancha-prazeres ou, simplesmente, para não magoarmos alguém. Só com o tempo vamos aprendendo que muitas vezes o não é fundamental para não fazermos fretes, para que nos respeitem e, sobretudo, para não nos desiludirmos a nós mesmos.
Numa outra lição imprescindível, a criança aprenderia que tudo na vida se pode mendigar, excepto afectos. Haverá pouca coisa mais humilhante que suplicar amor, carinho ou atenção a alguém que não tem por nós tais sentimentos. Muitas lágrimas, dores e frustrações poderiam ser evitadas se nos ensinassem isto logo no berço.
Facilmente continuaria a enumerar outras aulas elementares, se realmente achasse que as devíamos aprender deste modo. Não acho. Há coisas que só a vida nos vai ensinando e outras que só a maturidade nos permite pôr em prática. O riso, a felicidade e a realização não teriam sentido se não soubéssemos também as lágrimas, a dor e a frustração.

dualidade

Um dia levo-te comigo e deixo-te escolher. Um dia, por um dia, decidirás se me queres anjo ou demónio e eu encarnarei a tua escolha, indo buscar dentro de mim, às reminiscências ancestrais, o anjo ou o demónio, conforme a tua vontade. Porque antes do início dos tempos fomos tudo. Fomos deuses e diabos, anjos e demónios, luz e sombra, redenção e pecado. E por isso ainda hoje temos dentro de nós esta dualidade.