sábado, 26 de novembro de 2011

a vida é uma festa

Há dias em que acordo com a convicção absoluta que o mundo é uma festa, que a vida é uma dádiva preciosa e que tenho o dever de ser o mais feliz possível. Habituei-me, desde cedo, a não depositar nos outros a responsabilidade da minha felicidade. Nem sempre é fácil. Nem sempre quero admitir que se as coisas me correm mal, talvez seja porque não me esforcei tanto como podia. Nem sempre me apetece aceitar que, na maioria das vezes, quando alguém me trata com menos consideração, foi porque eu o fui permitindo. É sempre mais fácil colocar as culpas nos outros, no azar, na vida, no acaso. Todas as acções, mesmo as passivas, provocam reacções. A vida, os outros, retribuem-me exactamente aquilo que eu dou, aquilo que eu permito. É verdade que há verdadeiros azares e pessoas com má índole. Como também existem golpes de sorte e anjos no meu caminho. Uns balançam os outros. O resto, o dia-a-dia, é o reflexo das minhas escolhas, das minhas vontades conscientes ou inconscientes. Pesando tudo, tenho muitos anjos junto de mim e a vida é, realmente uma festa.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

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O mundo tem lugares escuros. E não são somente os locais dessa África imensa onde se perece de fome, de sede, de crueldade, onde tantos morrem sem nunca terem vivido. Nem os campos de batalha de guerras sem nome e sem sentido. Ou os sombrios becos da vida onde se rouba, mata, viola, agride. Há lugares escuros dentro de nós, dentro daqueles que amamos. E, por vezes, esses lugares turvam-nos a alma. Porém, sem esta escuridão, não reconheceríamos a luz. São as duas faces da mesma moeda. Perco-me para me poder reencontrar, na eterna dualidade que existe dentro de mim.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

nostalgia de outono

O cheiro das castanhas assadas continua a impregnar o ar e os nossos sentidos nos fins de tarde dourados de Outono. Ainda são “quentes e boas” na minha memória mas deixaram de o ser nos pregões extintos dos vendedores. “Um cartuxo de castanhas, por favor.” e já não me chega às mãos uma embalagem improvisada nas páginas de uma velha lista telefónica. “Não é higiénico.” dizem os senhores de Bruxelas. E nós, nós obedecemos aos senhores de Bruxelas. As castanhas ainda são lusas, vindas de um qualquer souto centenário que teima em escapar incólume às chamas que ano após ano consomem Portugal.
Sinto o cheiro quente das castanhas assadas na rua. Mais à frente está o vendedor. O fumo denuncia-o. Fecho os olhos e num instante regresso aos dias leves da adolescência. “Um cartuxo, por favor”, peço com um sorriso enquanto deliberadamente deixo cair o estojo junto de um homem elegante que aguarda a sua vez. “É velho para ti”, sussurra uma amiga. O homem entrega-me o estojo e eu agradeço-lhe com um sorriso rasgado e um olhar coquete. Pago ao vendedor e respondo serenamente à minha amiga: “É homem!”. Não expliquei mais nada. Nem sabia. Praticávamos por instinto a arte que acabáramos de descobrir.

a sombra do medo

Abriu os olhos e viu-as nitidamente. Sombras dançando na cadência de uma qualquer música inaudível. Fechou os olhos assustada. Se continuasse a vê-las teria de consultar um médico. Um oftalmologista, um neurologista ou, na pior das hipóteses, um psiquiatra. Adormeceu inquieta. Os dias passaram-se e continuava a vê-las, cada vez com mais frequência. Já não pensava no médico. Observava-as atenta. As sombras divertiam-se, sempre em folia. De vez em quando, parecia-lhe, ganhavam contornos mais nítidos. Vinham junto dela, acariciavam-lhe o rosto e percebia que lhe falavam. Habituou-se a elas. Eram várias e faziam-lhe agora companhia todo o dia. Homens e mulheres numa algazarra muda. Brindavam, bebiam e dançavam. E riam, riam muito.
Subitamente, deixou de ver as ver. Soube depois que tinha estado em coma durante vários dias. Sentiu-se feliz por rever pessoas de verdade. Mas sentia saudades das sombras. Lembrou-se da alegoria da caverna. Também para ela as sombras tinham sido a única realidade durante demasiado tempo, ou assim lhe parecia. Um dia voltou a vê-las. Era já velha, muito velha e estava muito doente. As sombras vieram junto de si, na sua eterna folia, e o seu coração moribundo encheu-se de alegria.

domingo, 6 de novembro de 2011

shadows & smeyes

O riso cativa-me. Gosto de almas cheias de riso. Gosto de ver o sorriso no olhar das pessoas. A língua inglesa tem uma palavra recente, smeyes (não sei se dicionarizada) que significa sorrir com o olhar. E se o riso me cativa, as sombras fascinam-me. É a eterna dualidade que sempre me seduziu. A luz e a sombra, o bem e o mal. A nossa essência. Suponho que existem pessoas genuinamente más e pessoas verdadeiramente boas. O comum dos mortais, onde me incluo, parece-me ser ambas as coisas.